Não é de hoje que Morrissey entra com o seu vídeo “educativo” de ultra violência, meus camaradas. Mas aos poucos o cantor parece se descolar da realidade ao devanear que a sua função no palco é educar e não entreter. O show de SP – realizado no último sábado (21), no Citibank Hall – deixou claro que o que antes eram pílulas suportáveis, principalmente ao tocar “Meat is Murder”, se tornou o principal ingrediente de seu show. A medida que Morrissey diminui sua capacidade física, paciência e aumenta o blá-blá-blá político e ativista, é preciso ter consciência do que você está comprando antes de ir. Os chilenos comemoraram o fato de serem os primeiros a verem “Jack, the Ripper”, que estava fora do repertório desde 2008 e “This Charming Man”, fora desde 2011. Em SP, lamentou-se o fato de ter sido o primeiro show desta perna sul-americana a não ouvir “How Soon is Now?”. Aliás, as músicas que vieram de Smiths foram aquelas de cunho político “Meat is Murder” e “The Queen is Dead”, junto com “What She Said” que colaborou no clima pesado da noite. Muita gente estava ali pelos Smiths, mas não é só pela falta de músicas da lendária banda oitentista que o show não deu certo.
O INÍCIO
Jerry Quarry, o valente boxeador californiano de linhagem irlandesa que nunca ganhou uma luta do Ali ou do Frazier, tremulava no telão antes do show começar. A perspectiva era de que vinha coisa boa por aí, pois a imagem remete ao You Are the Quarry, o retorno triunfal que Morrissey fez em 2004.

Jerry Quarry com seu irmão Jimmy durante treinamento no Caesar’s Palace em Las Vegas. 7 de abril de 1968 por Richard Meek.
Depois da imagem de Quarry, começou uma sequência interminável de clipes e vídeos naftalinados que não dialogam com este tempo. O vídeo mais novo que passou certamente é de uma era pré-Smiths. Hoje não tem ninguém que preste na visão de Morrissey, isso fica bem claro para quem o acompanha minimamente.
A sensação antes do show começar já era de cansaço, porque foram 30 minutos nessa masturbação visual de que agora o show vai começar…. e entrava o Charles Aznavour, que alguém próximo de mim na plateia batizou de Trololó (daquele meme que rolou na internet há uns anos atrás). Até uma apresentação ao vivo de “Looking for a Kiss” do New York Dolls tornou-se entediante. Ao meu lado as pessoas estavam impacientes, enquanto a catequese de Morrissey comia solta com coisas tipo, Anne Sexton recitando “Wanting to die”, a comemoração bizarra da morte de Margaret Thatcher com Ding Dong the witch is dead! do Mágico de Oz. A hipocrisia secular de Morrissey já começa por aí. Por mais que tenha existido pessoas ruins, comemorar a morte de alguém é de um mau gosto e de um mal-estar tremendo. Nenhuma novidade, que seja dito, ele sempre foi assim. O ambiente ruim começou a ser criado nesta sequência de clipes. Apenas o primeiro vídeo, que é “Loudmouth” do Ramones, teve uma recepção positiva, todos os outros foram recebidos de forma impaciente ou fria pelo público. É recomendável que Morrissey faça um programa impresso para sua plateia. Foi apenas entediante e não surtiu efeito nenhum em um público de língua portuguesa e pouco fluente em James Baldwin e nas causas de Morrissey.
Posto isso, a banda entra no palco logo após o vídeo de Lypsinka – drag queen que Morrissey já levou pro palco no começo dos anos 00, antes da cultura drag voltar a ser moda com RuPaul’s drag race e as 13 mil drag queens que apareceram em função do reality show.
O SHOW TAXIOU NA PISTA
A trinca inicial “Suedehead”, “Alma Matters” e “You Have Killed Me” deu a impressão que o concerto decolaria. O ex-Smiths já introduz “You Have Killed Me” com a verborragia linda que lhe é peculiar, “Do you forgive me? Cause… I… Forgive you“. Neste momento, eu achei que a estratégia seria de ter cansado a plateia com vídeos e depois entregar um senhor show, para criar o contraste. A promessa se manteve com “Speedway”, uma pauleira respeitável para os menos letrados em Morrissey e um canto de sabiá para os fãs. Na sequência veio “Ganglord”, a quinta música que mantinha o motor ligado e conhecida pela maioria, mas a pancadaria policial na tela começou a tirar qualquer tentativa de que alguém pudesse querer ter uma boa noite de diversão. Os vídeos de brutalidade policial são fortes, de revirar o estômago de qualquer um, ultrapassa com folga a barreira do mau gosto e esta informação precisa ser de domínio público antes que alguém opte por comprar ingresso. A intensidade desta turnê é sem precedentes neste aspecto. Morrissey, sempre foi conhecido por ser esta figura excêntrica e dramática, mas que deliberadamente vem pegando mais pesado nos últimos anos.
O show começou a degringolar de vez com uma sequência de 6 faixas de seu fraco último álbum World Peace is None Of Your Business, e depois ainda teve mais duas, totalizando OITO (!!) músicas do disco novo.
O momento de maior frenessi de toda a noite aconteceu ao final de “Meat is Murder”, uma das mais chatas da carreira do Smiths, acompanhada de cenas fortíssimas de violência contra os animais, fato que já tinha acontecido de maneira isolada na turnê de 2012, tendo sido o ponto baixo daqueles shows. Desta vez as imagens foram ainda além com os dizeres no final: “Qual é a sua desculpa agora? Carne é assassinato.” que foi recebido com uma ovação histérica muito mais próxima de cultos religiosos do que de um concerto de rock. E grifa-se esta parte, MUITO MAIS PRÓXIMA MESMO. Ovação de apenas parte da plateia, outra parte seguiu o fluxo da histeria, enquanto alguns viravam o rosto ou olhavam paralisados, como se estivessem chocados e com um nó na tripa. Houve relatos de que alguém desmaiou na plateia com as cenas. Houve também reclamações na página do evento no facebook de público acima da capacidade e calor. No setor mais frontal do palco, a população era confortável, estava cheio, mas confortável.
Morrissey é conhecido pelo ativismo e visão política forte. No Viva Hate (1988) ele cantava lá no fim do disco sobre o seu sonho com a morte de Thatcher. A rainha estava morta e a carne já era assassinato com os Smiths.
A diferença de agora é que isto está sendo colocado numa dose acima da conta e comprometendo todo o show. A energia foi pesada para a maioria, não vingou. O vocalista parecia ter tomado algumas tacinhas de champagne além da conta, o que poderia ter se tornado um ingrediente interessante, caso o show caísse para um lado divertido e caricato. Balbuciou desconexamente por vezes, hora falava “obrigado” e na maior parte agradecia com “gracias”. Tretou com alguém da plateia em “Smiler With Knife” (mais uma enfadonha música de seu disco novo que é voz-violão), e ofereceu o microfone para a plateia. Ele queria silêncio, não teve silêncio. Continuou a música. No fim chorou, chorou não sei porque. Faz parte da sensibilidade do artista. Parecia querer se contagiar pela emoção da letra, até que conseguiu, mas talvez seja apenas uma ou duas taças a mais de champagne na cabeça.
Não estou aqui para advogar na causa Smiths, apesar de ser o que muito dos presentes esperavam. E não se pode tirar o direito do fã de Smiths ter ido esperançoso, já que canções de sua antiga banda é uma presença histórica em seus shows. Mas, enfim, eu vou advogar na causa de “First of the Gang to Die”, “The More You Ignore Me, the Closer I get”, “Irish Blood, English Heart”, “The Last of the Famous International Playboys”, “Let Me Kiss You”, “I Have Forgiven Jesus”, “You are the one for me, fatty”, “Glamorous glue”, “We hate it when our friends become successful”, “The Youngest was the most loved”, “Why Don’t You Find Out for Yourself”, entre outras. Só teve “Everyday is Like Sunday”, perdida no meio, depois do quinteto inicial e até chegar no BIS. Ou seja, a sua carreira solo oferece alternativas e bala na agulha pra ir além do que foi feito no sábado.
Em contrapartida, o setlist no Teatro Renault foi bem mais condizente com o que se espera do artista quando toca no Brasil, ou na América do Sul. É um erro repetir o mesmo show feito na Europa Ocidental ou nos EUA, onde o ídolo se apresenta todo ano, ou quase isso, aí é natural que o foco caia para lado-b, ou para músicas mais novas. Talvez se tivesse feito o set de sábado na terça – quando tocou para uma audiência menor e que tende a ser mais fanática – e o set de terça no sábado – para uma audiência maior que tende a ser mais genérica -, talvez o resultado da noite fosse amenizado. De terça para sábado ocorreram trocas significativas em termos de repertório. Quem não é fanático suporta a verborragia de Morrissey em troca das boas canções. E estas canções, no sábado, foram entregues no conta-gotas.
JUSTIÇA SEJA FEITA PARA O BIS
Ele guardou um pouco de energia para o bis e trouxe o que o público esperava, quando mandou “I’m Throwing My Arms Around Paris” em uma performance de palco emocionante com a bandeira francesa ao fundo e “The Queen is Dead”, quando aceitou minimamente a pachequice que os brasileiros tanto adoram, pegando a bandeira e tratando ela de uma forma pouco respeitosa, pra não falar que enfiou parcialmente a bandeira no saco, o que foi bem legal. E por fim tirou a camisa e jogou na galera, fora um disco assinado e um ou outro aperto de mão, ficou por aí.
A mitológica figura inglesa se cansou.
O público saiu do show em silêncio, não saiu em êxtase. E isto vai além do fator The Smiths. É um conjunto de coisas que vou resumir no final.
Dois pensamentos ao sair cabisbaixo do Citibank Hall
1 – Fui para uma sessão da técnica Ludovico em Laranja Mecânica e que se se fosse possível ele obrigaria a plateia a assistir as cenas em nome da conversão e da terapia.
2 – Da entrevista que Noel Gallagher deu para o Quietus falando que Morrissey não era pregação, por isso era uma figura mais interessante.
“Sim me interessa mais porque em sua música ele não estava cuspindo na sua cara o tempo todo sobre suas visões políticas. Não está mijando na sua cara. Não era… Stalinista ao impor. Você sabe, The Queen Is Dead – é sobre a rainha? Ou poderia ser de outra coisa, uma rainha genérica? E eu não me lembro de ter lido uma entrevista onde Morrissey foi realmente aquela porra de pregação. Ele era divertido em suas entrevistas. E todas as bandas de classe operária que surgiram nos anos 80 e os anos 90, eles tinham grandes músicas, e essa é a linha de fundo. Sim, cuspir não é bom. Nada nunca vai fazer a diferença dessa forma.”
Talvez seja a hora de rever esta declaração, caro Noel.
Sim, cuspir não é bom. Nada nunca vai fazer a diferença dessa forma.
Então a equação é esta.
– Repertório não condizente com alguém que toca em território nacional apenas pela terceira vez em toda sua carreira.
– Ativismo foi grelhado demais na chapa, mau gosto, alienação, energia pesada, com momento de maior excitação mais próximo de “aleluia irmão” do que para um show de rock.
– A presença de palco que sempre foi um ponto alto de seus shows estava controlada demais, talvez esteja cansado, excessivamente introspectivo, odiando tudo e todos, não convenceu como alguém que vivia ali em uma noite especial, ficou claro que era apenas mais uma noite de uma longa e chata turnê.
Mais uma justiça seja feita para a sua voz, que sofreu muitas críticas neste período mais recente. A voz funcionou muito bem em praticamente todo o show.
The world is full of crashing bores, incluindo este show do Morrissey.
The world is full of crashing bores 2: tinha um cara lá na frente com uma faixa “MARIANA PARIS”, outro ponto alto do show foi Morrissey não ter dado pelota pra ele. O trouxa chegou a jogar a faixa no palco. Moz só olhou de rabo de olho e mandou sarcasticamente “I’m… AFRAAAAID”. Hahahaha. Faltou um pouco mais deste Morrissey ao longo do show, as sacadas foram desconectadas da audiência.
MARIANA PARIS. Como tem gente que adora uma demagogia. CREDO.
O my brothers, my comrades.
https://www.youtube.com/watch?v=j-cS3u-pWno
MORRISSEY
Onde: Citibank Hall, SP.
Data: sábado, 21.11.2015.
Hora: 22h30 com apx. 01h30 de show.
Nota: ★★
Legenda da nota.
★★★★★ – Imperdível, show perfeito, viver neste show seria uma vida de sonhos realizados.
★★★★ – Competente, acima da expectativa. Conquistou a plateia e largou todo mundo com um sorriso no rosto ou um choro no olhar.
★★★ – O show padrão, entregou o que se esperava.
★★ – Fraco, ficou devendo. Não pagou o ingresso.
★ – Péssimo, melhor tomar um tiro do que ver este show. Não vá nem na bala.
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