Se o Brasil em ano de climão rendeu chateação, por outro lado rendeu ótimos temas para discos. O país parece sair daquele falso estado fluoxetinado, de pluralidade e felicidade, para enfrentar e tentar desconstruir os próprios preconceitos. Nem todos os álbuns da lista passearam por temas sociopolíticos, mas é notável a quantidade daqueles que o fizeram.
Outro ponto de destaque é o estado em que a música brasileira se encontra. Existe um senso coletivo mais sincero do que há alguns anos. Existe um clima de otimismo, orbitando em torno da coletividade. Não aquela “coletividade” bizarra, hippie e semi-religiosa de anos atrás. Algo mais focado na profissionalização e no networking (se for preciso colocar alguns anglicismos pra profissionalizar a coisa, que seja). Desta forma, crescem os adeptos que também querem fazer parte de algo que está sendo bem feito, seja como público, como agente ou ambos. Os patrocínios e apoiadores também melhoraram, tudo como reflexo de projetos mais consistentes. O independente nacional chega em seu melhor momento e pela primeira vez vislumbra-se um mercado com possibilidades de se tornar autossustentável.
Com essa quantidade de gente trabalhando com música e pela música, o superávit do produto musical brasileiro já pode ser notado em 2017, onde a tônica é a pluralidade de gêneros musicais e representatividade humana. Aliás, a coisa de gênero fica cada vez mais como um conceito do passado. Consolida-se um conceito de música de frente, que é difícil de definir. A música de frente, via de regra, continua longe do radar da grande mídia e nas mãos dessa turma de profissionais aficionados por música. Até o termo “independente” fica meio ultrapassado, porque nem todo mundo é exatamente independente. O termo indie então nem se fala. Ficou muito mais associado com uma sonoridade específica do que com a cena alternativa.
Parabéns turma de 2017, é a turma mais forte desde o ano em que este site começou, lá em 2011.
Bicho, e 2018 promete! Ano de Copa, eleição e a uma nova classe de talentosos que já mostraram o cartão de visitas através de EPs ou que não lançaram disco este ano. Queremos tudo. Seguimos.
Na playlist ao lado tem os 50 discos em ordem de chegada, pra você ouvir no Spotify enquanto lê. Agradecimentos ao leitor João Lisboa que montou 98% dessa playlista hahahaha. Se quiser seguir/ouvir os álbuns individualmente é só clicar nos links abaixo.
50 Young Lights – Young Lights
49 Rodrigo Campos – Sambas do Absurdo
42 Plutão Já Foi Planeta – A Última Palavra Feche a Porta
41 Vermes do Limbo + Bernardo Pacheco – Berne Fatal
40 As Bahias e a Cozinha Mineira – Bixa
Aqui a evidência dos elementos inspirados no shoegaze psicodélico ganha forma ao se mesclar com uma atmosfera mais polida e harmônica em uma encantadora experiência em constante mudança. A voz suave cria um equilíbrio entre a guitarra que anuncia a melodia ou serve como ponte de mudança nas músicas (como aparece em Into the Breeze), mas o destaque é sem duvida a bateria, que é incorporada em todas as musicas sem aparente dificuldade em mostrar que sabe a sua própria direção e identidade dentro da composição geral. Congo Congo é um supergrupo com nomes conhecidos da cena de BH e oferece qualidade para compor belas canções.
Rebuliço instrumental que ao vivo deve ser imperdível. Caldeirão fervente e plural de tudo que não te faz ficar parado.
37 Aláfia – São Paulo não é Sopa
Álbum tão denso quanto São Paulo, cheio de esquinas e novas descobertas a cada interação.
36 Tiê – Gaya
Tiê continua <3 em Gaya.
Mais um belo disco do Curumin. Eletrônico, especial nas participações e com algumas faixas cantarolantes. Porém a característica que marca o álbum é a força hipnótica e de fazer dançar, em uma mescla ritualística.
O álbum possui uma produção boa e as letras peculiares cantadas em forma de história e elementos eletrônicos bem arquitetados à voz, que soa dissonante mas que se destaca por talvez possuir exatamente essa intenção. É um trabalho bem pensado e diferente; não é pra qualquer ouvido. Mas para os que gostam de se aventurar no que há de novo, é uma boa pedida.
33 Jonathan Tadeu – Filho do Meio
O álbum possui uma produção boa e as letras peculiares cantadas em forma de história e elementos eletrônicos bem arquitetados à voz, que soa dissonante mas que se destaca por talvez possuir exatamente essa intenção. É um trabalho bem pensado e diferente; não é pra qualquer ouvido. Mas para os que gostam de se aventurar no que há de novo, é uma boa pedida.
Metá Metá segue fervendo, com mais um EP e um disco cheio, como trilha sonora do espetáculo Gira para o Grupo Corpo. O álbum aprofunda e amplia ainda mais a paleta de possibilidades deste grupo basilar da nova música brasileira.
31 Miêta – Dive
É impossível não lembrar da guitarra do Dinosaur Jr., ou dos vocais esfumaçados do Lush e de toda a geração noventista do fim dos anos 80, início dos 90 em um mescladão entre o rock alternativo americano e a shoegaze britânica, com maior inclinação para o primeiro. Banda justa, com boas (algumas ótimas) composições, boa produção e muito bem encaixada. E estamos falando de uma banda em seu disco de estreia. Liricamente, faz um mergulho por questões existenciais, feminismo e depressão. (PS: É impressionante como Minas Gerais tem dominado esse tipo de sonoridade de uns anos pra cá e reproduzindo-se em novos e competentes atos).
30 Sepultura – Machine Messiah
Sepultura em Noite de Climão.
29 Don L – Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3
Dizer que as melhores letras estão no rap, já é chover no molhado. E no campo dos versos, Don L exibe sua maior força. Sem medo de desagradar ou sem vontade de fazer média com ninguém, o artista transparece honestidade em seus versos. Em termos de produção também é um disco grande, com instrumental orgânico, riqueza de harmonias, segunda voz é uma tônica recorrente, em camadas, efeitos e todo tipo de cuidado para encantar o ouvinte e sair do óbvio.
Agora como um quarteto a Vanguart extrai uma sonoridade peculiar dos instrumentos e se diferencia dos trabalhos anteriories. O que pode causar estranhamento em um primeiro momento valoriza o embate entres letras de Flanders e Lincoln sobre o amor, o desamor e o medo.
Em uma mistura elegante e inventiva de mpb com eletrônica, a recifense Sofia Freire chega à Romã, segundo álbum de estúdio que espelha um registro delicado e poético de entrada na vida adulta da jovem artista. Sonoramente é permeado por belas melodias ao piano, batidas eletrônicas que dão profundidade e recortes vocais encorpados (de uma escola early-Grimes). As letras são todas de poetisas próximas à compositora e refletem dores contemporâneas, reforçando a característica atual da obra.
26 Kalouv – Elã
Sentimento cru transformado em sublimação. O sucesso deste disco é a interligação entre mente e alma de forma orquestrada.
25 Flora Matos – Eletrocardiograma
Em Eletrocardiograma, Flora Matos conta a história de desilusão amorosa e reconstrução do amor próprio através de rimas detalhadas, em uma bem-sucedida fusão de rap com pop.
Rock, samba, música paraense, soul, tropicália, frevo. Tem tudo isso no disco de Johnny Hooker que aproveita a mistura de estilos para falar de seus amores e desilusões, homenagear Caetano Veloso – sua maior referência – e trazer participações especiais como Gaby Amarantos e Liniker e os Caramelows, que brilha em “Flutua”, uma declaração de amor atual e necessária.
Neste site, Rodrigo Ogi só perdeu pra Elza Soares na lista de 2015. Este ano não tão perto do topo, o que não quer dizer que o artista desceu de nível. Pelo contrário, Ogi chega em Pé no Chão ao seu auge em termos melódicos. Existe uma maior exploração entre beats mais densos e como eles se aproveitam da evolução melódica para fechar a conta em arranjos maiores. Os samples são sensacionais, as inserções narrativas um show à parte. Os versos continuam fortes, pouco óbvios, atuais e viscerais com jogo de palavras e uma diversificação de vocabulário, sem cair no erro de ser prolixo. Ogi é linguagem das ruas. A amplitude harmônica é muito bem-vinda e nos dá a certeza que o rap/hip hop é um protagonista em se reinventar e incursionar por outros gêneros, vide o híbrido de samba em “Deixe-me”. O artista sai da zona de conforto e claramente está ligado com as evoluções do gênero.
A banda catarinense entrega em Fohn Jilme um dos melhores discos nacionais de noise pop, alternando momentos de maior pegada (destaque para alguns riffs, como acontece em “Mr. Bouncer”) com outros de maior ambiência e exploração, normalmente desdobrando-se em algo mais brisado/psicodélico. A constante mudança de dinâmicas e como a banda consegue transitar naturalmente entre abrasividade e risadinhas estomacais floridas é o que chama atenção. Existe uma coesão de timbragem que faz a cola deste passeio. O álbum também nos ganha por sua coolness velada – aquele sujinho “tô nem aí se tá massa o som”. O fato é que tá alinhado com o que o indie-dont-give-a-fuck tem feito de interessante por aí, em atos como DZ Deathrays (mais paulada), Twin Peaks (médião) ou Homeshake (brisadérrimo). Ainda um passo atrás do Beach Fossils, que entrou em outra liga em termos de grandiosidade nos arranjos… coisa de quem se preocupa demais.
21 My Magical Glowing Lens – Cosmos
A composição introspectiva e melódica de “Cosmos” é uma feliz afirmação da representação feminina na música brasileira e carrega nas letras e no som uma sensação de que há poucos álbuns que se completam tão bem com a voz e efeito. É uma experiência doce, tranquilizante e unicamente atraente imersa em um ambiente para além da consciência que parece construir uma misteriosa história em meio aos acordes. É belo. Pontos fortes “Tente entender”, “Noite estrelada”, “Da selva pro mar”, Portal” e, claro, “Supernova”.
Filipe Catto chega ao terceiro disco de sua carreira e talvez o mais pessoal, Catto. Dono de uma das melhores vozes que surgiram neste país nos anos 10s, o músico nos entrega um álbum neste final de ano, rico em texturas e plural nas sonoridades. Alinhado com o melhor desta mistura híbrida e heterogênea da nova MPB.
19 Maglore – Todas as Bandeiras
Os baianos da Maglore mostram nesse quarto disco o amadurecimento que preserva a jovialidade inicial da banda com arranjos melódicos que exploraram e misturam psicodelia, rock’n’roll dos anos 60/70 e música brasileira, enquanto as letras abordam o momento atual da nossa civilização, com as crises políticas, emocional e moral sempre de forma acessível e positiva, lembrando que as pequenas coisas da vida valem a pena.
A Lekodelia é a psicodelia do cara lek. Existe um elemento fundamental de escracho e de foda-se que rege toda a obra. A sonoridade retrô remete a tropicália e claro que, dentro disso, vamos lembrar da parte carioca da classe, como Jorge Ben e Jards Macalé. Mas isso é só uma referência longínqua, talvez mais enraizamento de identidade musical do que norte deliberado ao álbum. A tal lekagem soa como um alegoria pensada para o corrigir o sal e não tornar o disco tão sisudo no tom crítico que carrega, ou prolixo. Leo é um artista inquieto. Pensador, o álbum é presente, pois vai na veia do país dos adoradores de pato amarelo na Avenida Paulista (“O Pato Vai Ao Brics”). A cegueira brasileira, o racismo e a luta de classes. Inclusive da classe média submissa, que oblitera o futuro dos seus na esperança de um dia ser algo mais.
Que ano do rap! Djonga é mais um disco com versos profundos, beats cavernosos e samples minimalistas, mas bem encaixados. Ainda agrega alguns versos mais gangsta em contrapartida aos seus outros párias do rap, que possuem uma politização digamos menos ácida se comparado ao Djonga. O rapper de BH também tem um flow mais agressivo e que o diferencia dos demais.É natural que o disco te grude mais na mensagem do que na sonoridade.
MPB com eletrônica e elementos de jazz. Orbitando o contemporâneo e feminino, BEL entrega o primeiro álbum de estúdio, essencialmente minimalista em seus arranjos, porém distribuído em instrumentação rica e elegante. Também denso, por vezes atmosférico, a carioca Bel Baroni apresenta o cartão de visitas como um expoente desta nova cena que anseia por representatividade. Destaque para a viciante “Fica Fácil Assim”, faixa em parceria com o coletivo Xanaxou da qual a própria artista faz parte.
Mergulhado em texturas sonoras e referências literárias, Animais Feridos foi produzido por Gabriel Soares, também responsável pelas composições e letras do disco. Essas texturas ficam claras logo na primeira música, “A divina comédia”, que faz referência à obra de Dante Aliguieri. Sonoramente, passa pelas três fases do livro, inferno, purgatório e paraíso.
Destaques para: “The bell jar”, referência ao livro da escritora norte-americana Sylvia Plath, onde a personagem vai em busca de uma saída para a sua angústia. Na canção há uma tentativa de salvação desta angústia, terminando em uma bela canção de amor. Uma das mais bonitas do disco, “O primeiro filme de Leos Carax”, que faz referência ao diretor francês faz com que o espectador seja um crítico. Essa canção desenha uma bonita forma de enxergar a própria canção como num filme. E o disco fecha com a ótima “Onde está Belchior”.
Caótico e vulgar. Se a frente da música independente é dividido entre matéria bariônica e matéria negra, o Subburbia orbita dentro da energia escura. Invisível aos olhos da cena, mas musicalmente comprime a maioria da cena deste nano universo.
Entre tantos shows e turnês, o quarteto não se acomodou e encontrou tempo para entregar seu trabalho mais experimental, com 8 faixas em menos de 30 minutos. Conciso, cada música convida o ouvinte a confrontar seu próprio cinismo, com complexas camadas sonoras reforçadas pelo uso dos sintetizadores e samplers, em letras de tom pessimista e etéreas.
Tim Bernardes d’O Terno lança o seu primeiro trabalho solo, Recomeçar. O disco é mais requintado e introspectivo do que o mundo (brasileiro) se acostumou com a banda. Soa como trilha sonora, com arranjos luxuosos e espaço para o compositor se soltar artisticamente. Tendo produção e aparato à disposição, Tim entrega um disco inspirado, principalmente nas faixas mais prematuras. O álbum chega no limite na questão do tempo, dura o máximo que pode durar ao propor um passeio por beleza, sentimento e profundidade da narrativa criada. Mas, basicamente dono de um único humor. Sendo assim, quanto mais longo for o corte, maior é o risco de distrair, entediar ou dispersar o ouvinte. Se querem saber bem minha opinião, cortaria 3 faixas e faria durar não mais que 35 minutos. Frise-se, Tim fez algumas das canções mais encantadoras do ano (“As Histórias do Cinema” é absurda de boa), dono de uma capacidade fora do comum em criar paisagens sonoras. Mestre dos lullabies.
Que disco absurdamente delicioso. Logo na primeira música já encontramos uma fusão de MPB, um entoamento vocal mais ritualístico/litúrgico até a onda bater em uma eletrônica escrachada, algo de EDM/trap. Mais uma prova que o relaxamento da música brasileira com ela mesma, através de uma série de novos nomes é algo concreto dentro de um amálgama híbrido. Luiza Lian é exatamente isso e em seu segundo álbum, permite-se partir para o experimental e a exploração do mundo exterior. Oyá Tempo é também multimídia, simples e complexo. Arquitetado e visceral, “Cadeira” não me deixa mentir. Luiza não é aposta, já é realidade, mas parece um dos nomes mais possíveis para o protagonismo dessa nova arejada e claustrofóbica MPB.
Far From Alaska é uma das poucas bandas que traz referências sonoras mais herméticas da década passada e o faz em absoluto alto nível. Certamente a melhor banda no nicho em que está inserida e entre as melhores em todos os nichos no Brasil de 2017. A sonoridade abrasiva e stoner respira em vertentes mais suaves, como o indie festivo e o reggae. Outro ponto é a estética visual da banda, bastante criativa e fujona da obrigação que toda banda mais pesada precisa usar preto ou cores escuras. Os potiguares parecem chegar ao seu melhor momento de maturidade musical. Existe um certo relaxamento bem-vindo, de quem consegue brincar com as próprias composições e essa relação se torna muito frutífera dentro das melhores qualidades do FFA: aquela energética e deliciosamente melódica.
9 Luísa e os Alquimistas – Vekanandra
Se a tônica desta lista é a pluralidade da música brasileira, que se reinventa por conta própria, sem grande aporte financeiro e sem o olhar da grande mídia, Luisa e os Alquimistas poderia ser o resumo disto em uma única banda. Vekanandra é o segundo álbum do quarteto potiguar, viabilizado através de crowdfunding. É o mais diverso entre os álbuns desta lista, de tal forma que resume bem o novo olhar alternativo. Cada vez menos identitário através de gênero (musical) e cada vez mais identitário sobre o que é música de frente. É complicado definir música de frente, mas tenha certeza que será algo em que a grande mídia estará sempre alheia. E, neste caldeirão de gêneros, a banda explora sua sonoridade que passa por tecnobrega, nas faixas 1 e 2 (aqui com uma incursão de reggae). Eletrônica mais densa e afogada, em uma espécie de trip hop tropical na faixa 3 e 4 (aqui com uma viagem Lana Del Reyzistica). A 5 mantém os beats densos, os espaços, com toques de latinidade. A faixa 6 é Amy Winehouse (aquele pop elegante, de dançar coladinho e que se tivesse mais dinheiro para produzir, caberia 3 cantoras de gospel fazendo o backing). Enquanto viajo na faixa que fecha o disco, como um rádio ajustando sintonia. Pego-me pensando que na época de Amy Winehouse existia também Banda Uó -ou Bonde do Rolê se quiser ser mais exato em função do tempo-, que sempre se aproximou de uma sonoridade mais brega e do escracho. Amy jogava com o elegante e o íntimo. Seria inimaginável, há 10 anos, fazer as duas coisas no mesmo disco e ser levado a sério. Com coerência e coesão artística. Luisa e os Alquimistas sopra os novos ventos e prova que sim. Tem como.
8 Ximbra – A Maldição Desta Cidade Cairá Sobre Nós
FODA! Que paulada é essa bicho. Rock alternativo na sua essência, lo-fi, noventista carregado de letras sociais e que destroem o corporativismo, carregado de regionalidade que só o rock nordestino é capaz de fazer. Aliás é a atualidade das letras e o regionalismo na sonoridade que proíbe qualquer incauto de associar Ximbra a algum movimento revivalista. A energia das dinâmicas, sejam elas vocais ou de cordas, te dá a certeza que existe muita verdade e entranhas expostas no disco destes caras.
7 Giovani Cidreira – Japanese Food
Mais um disco desta lista que já vence na capa, meio Shamir numa Kombosa. E isto explica muita coisa do resto. A forma coesa em que Giovani Cidreira entrega uma obra essencialmente híbrida é o grande trunfo do disco. Passeando pelo indie rock pós-10s, capaz nas harmonias crescentes e reviradas e timbragem brisada, misturado com um passeio pelas possibilidades, timbres e traquejos de brasilidade experimental, que remetem a nomes como Clube da Esquina, Arthur Verocai ou Marcos Valle. Muitos artistas baianos fizeram a lista este ano, onde destaca-se sonoridades tão díspares. Seja a Bahia da MPB barra tropicália, ou seja a Bahia do Axé, o monocromatismo sonoro era uma característica indefectível. A Bahia serve como espelho do Brasil e a diversidade da paleta sonora parece viver momento único também em território nacional.
O primeiro contato com a obra de estreia solo da Xênia França já é um deslumbre pela capa. O segunda passo é olhar a lista de faixas e perceber o jogo inteligente com a vírgula na faixa “Respeitem Meus Cabelos, Brancos”. E o play na primeira faixa “Pra Que Me Chamas?” já mostra a quem veio servir. Aos sons e ritmos africanos, que servem como guia no direcionamento musical, que apesar de diversificado e cheio de alternativas instrumentais, busca linhas minimalistas dentro do arranjo, com tempo para o espaço, timbragem abafada, deixando o limpo para a voz e versos da artista. A sonoridade diáloga com o pop, jazz, música eletrônica e R&B. As letras podem ser tanto delicadas, românticas como nos toques jazzísticos “Miragem (Sem Razão)”, como de empoderamento pela cultura negra, especialmente a religiosa, e pela mulher. “Garganta” é o interlúdio perfeito, interpretado por Roberta Estrela D’Alva, que dá folêgo e respiro para um recomeço do álbum, naquela música que fazia um jogo esperto de vírgula. A faixa 7 poderia ser a faixa 1. E assim Xênia segue cronologicamente contando sua história plural e multicultural, baiana e paulistana.
5 Rincon Sapiência – Galanga Livre
Tirando meia dúzia de puristas do rap, não encontrei um ser vivente que cometesse a sandice de dizer que este disco não é bom. Amplamente elogiado e aclamado por crítica e público, Rincon fez um disco completo, com profundidade de alma, sexyness, coolness e nos temas sociais, das ruas e do povo pobre. A primeira vez que falei deste álbum há uns 6 meses, havia dito como “A Volta pra Casa” era a minha música favorita e como cada verso da narrativa de uma rotina de trabalho que a gente banaliza no dia-a-dia, mas é toda essa treta que está ali. Rincon ganha por fazer um disco rico musicalmente, passeando por arranjos nada óbvios, suingue e sem prender-se em gênero. As letras advogam pela causa afrodescendente, mostram-se conscientes sobre a realidade do país, passam por temas de amor e cotidiano. O olhar atento do artista para uma rica gama de opções é o que traz um senso de pluralidade. Manicongo é o antônimo de alienação.
4 Kiko Dinucci – Cortes Curtos
O guitarrista Kiko Dinucci conta com um time de colabores de peso, que inclui as cantoras Juçara Marças, Ná Ozzeti, Tulipa Ruiz e Suzana Salles, no seu trabalho de estreia solo. Kiko leva o ouvinte por um passeio na selva de pedra do centro de São Paulo, onde personagens e situações cotidianas são retratados em letras, arranjos e ritmos que traduzem o caos da capital e nos envolvem em uma tensão que curiosamente é aconchegante e agradável aos ouvidos.
O rapper baiano fez um disco que ficará marcado em 2017. A capa do disco já é uma arte ao colocar o artista de braços abertos para a catedral, de frente para a cruz, simetricamente ao topo. O escrito Esú é formado através de Jesus com corte no J e S, e acento agúdo no U. Múltiplas interpretações podem ser tiradas a partir do sincretismo da capa, como a resistência das religiões de matriz africana, em contraposição à colonização cristã. Menos como uma provocação e mais como voz e existência. Existência de um passado onde escravos precisavam invocar os orixás africanos em segredo, na forma de santos católicos. Os braços abertos e a liberdade de poder dizer quem é, dentro de um momento de enfrentamento direto ao conservadorismo e empoderamento das minorias, inclusive religiosa. Longe de um prisma de provocação, muito menos de enfrentamento direto. Enfrentamento anticristão, na música, foi o que a cena de black metal norueguesa fez no começo dos anos 90.
Baco é, acima de tudo, um esteta.
A contraposição imagética será termo recorrente em seus versos. Confronta o sagrado com o profano, o divino com o mundano, onde a interpretação é tão importante quanto o flow. Os beats são fora de série, acentuam e dão a profundidade necessária para as angústias do artista.
Nos samples encontramos a cereja melódica do bolo, que torna o rap essa coisa tão potente e preenchedora na música de hoje em dia. Seja MC Duzinho em “Senta Firme”, no carro-chefe do amor não romantizado, e sim carnal e íntimo em “Te amo disgraça”. Ou Novos Baianos na faixa-tema “Esú”. Arthur Verocai (“Dedicado a Ela”) em “A Pele Que Hábito”, também lembrando de Almodóvar. “En Tu Mira” é a melhor letra do ano, e renderia muitas outras linhas apenas para analisar a força destes versos, onde o rapper soteropolitano ainda incrementa com interpretação vocal de quem é ator das próprias rimas.
2 Linn da Quebrada – Pajubá + Ao Vivo showlivre
Sonoramente caótico, liricamente representa um grito de protesto. É tipo Atari Teenage Riot, como mulher brasileira, afrodescendente, trans e da quebrada! Linn bota em seus versos contra tudo aquilo que é normativo. Ela quer ser vista, ouvida, quer ser bonita e não apenas engraçada. A temática sexual, recorrente nas letras, representa raiva e libertação.
Pajubá e o Ao vivo no estúdio show livre foram ambos escolhidos, para marcar dois momentos na opulência da artista. Ainda que exista uma interpretação vocal nos álbuns de estúdio, é ao vivo que Linn consegue delinear mais fortemente as curvas de seu ser. É onde ela coloca sua voz pra fora e acentua as tônicas de cada verso. A música que ela compõe, demanda essa acentuação, que o estúdio teima em corrigir. Não é MPB de banquinho. É música para sentir e marcar na pele, nos quadris e no suor. O mundo complexo, endurecido pela opressão e enternecido por um coração que a gente encontra nas entrelinhas do enfrentamento ou nas ótimas sacadas de escárnio. Linn da Quebrada vem pra quebrar algumas barreiras, ser ouvida e fazer a parte dela neste mundo que berra por mais aceitação.
Se Pajubá cometeu algum deslize foi o de não colocar “Bixa Preta”, um hit de Linn, em sua seleção. Também por isso cabe os dois discos aqui para fecharmos como a melhor coleção do ano para uma única artista.
Letícia, ex-Letuce, agora é Letrux. Em seu disco de estreia a artista entrega uma das obras mais viscerais sobre “catar os cacos e seguir em frente”. Como uma sequência cronológica, que poderia representar uma noite ou um ano. A medida do tempo não importa, o que importa é a existência e a necessidade de resolver o conflito até nos encontrarmos novamente. O disco segue por todos os estágios: orgulho, euforia, tristeza, novos amores e novas descobertas que atravessam a tormenta rumo à calmaria. Apesar de carregado de emoções, é um disco leve. Carrega certo tom de humor e transborda sensualidade, mais visível em “Que Estrago” e “Flerte Revival”. Esta dualidade de temática pesada, mas liricamente conduzida de maneira leve é, talvez, o grande triunfo do disco.
Também traz harmonias deliciosas, timbres noturnos, nostálgicos e arranjos engenhosos, com algum destaque para os teclados/sintetizadores (Arthur) e a interpretação vocal de Letícia. Aliás, vale fazer um parênteses aqui. Se Letícia Novaes é a alma e a narrativa deste climão, Arthur Braganti é a cenografia de luz indireta, com uma ambiência que ele tem escalado desde o Séculos Apaixonados. É um 10/10. Muito honesto, direto e inspirado. Daqueles raros momentos em que a artista consegue se encontrar com sua melhor música do começo ao fim de uma obra.
Texto, imagem e edição por Flavio Testa exceto em:
Kiko Dinucci, Boogarins, Maglore e Vanguart por Rodrigo Fonseca
My Magical Glowing Lens, Jonathan Tadeu, Lutre e Congo Congo por Isadora Arantes
Atalhos por Raphael Pousa
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9 Comments
O Equivocada da Marcelle também é um discão lindo!
“Um corpo no mundo” da Luedji Luna foi de longe uma das melhores coisas no ano, e tá fora da lista… Lucas Santtana tb fez “Modo avião”, outro discão q ficou de fora. Pena, foram muito mais interessantes que alguns nessa lista, q mesmo assim é boa.